
Sou uma pessoa simples e comum, uma grande desconhecida de muitos porém muito conhecida de poucos. Nem fada nem bruxa, apenas alguém que um dia sentiu desabrochar em seu coração imensa vontade de desafiar os próprios limites e chegar caminhando à majestosa Catedral de Santiago de Compostela.
Minha história não é diferente de nenhuma outra, mas por ser minha é única e muito especial. Todos temos sonhos e desejos ocultos; adormecidos pelas lutas diárias, pelas atribulações e preocupações sem sentido; que por vezes afloram de forma inesperada, nos incomodam tanto que acabam por funcionar como propulsores, nos aproximando de sua realização.
É estranho como passar dias e dias caminhando, sentindo dores, calor e sede, pode nos fazer tão bem. Nunca pensei que carregar a mochila nas costas, dormir no chão, ser devorada por pulgas e mosquitos famintos poderia ser tão prazeiroso. Quantas vezes, reclamei injustamente de minha cama, apesar dos lençóis limpos e macios. Fantástico este antagonismo!!!
De onde veêm a energia e a força para o ritual diário repetitivo de levantar, colocar o tênis, jogar a mochila nas costas tomar o cajado nas mãos e iniciar a caminhada como criaturas únicas que somos, fortes e firmes em nossos passos. É mais um dia na frenética contagem regressiva que à medida que se aproxima do fim, nos traz cada vez mais forte o sabor de quero mais. É incrível que o passar do tempo, o aumento das dores e do cansaço físico sejam justamente ingredientes fundamentais ao refrigério da alma e do coração, nos permitindo retirar forças não se sabe de onde. É uma energia mágica que nos envolve.
De onde ela vem? Descobri que ela não vem, na verdade ela está e sempre esteve dentro de nós, porém ela está aprisionada.
Durante o caminho nos despimos da vaidade, do materialismo, da marcação do tempo, da dependência do contato rápido pelo celular, talvez despidos disso a energia possa aflorar. Afinal no caminho estamos apenas vestidos e revestidos de nos mesmo.
Ah!!! doce e forte energia da vida, brilhando a guiar-me passo após passo, km após km, dia após dia.
Se realmente pudéssemos compreender quão pouco precisamos para alcançar a felicidade!
Durante o caminho não vi fadas, duendes ou luzes coloridas, mas vi a força da natureza explodindo em vida, brigando contra a maldade do homem expressa pelas queimadas, mas a vida, em sua constante teimosia, insiste em se instalar.
Vi a beleza e a importância de um pequeno riacho a nos refrigerar os pés já machucados e ardendo pelo esforço da caminhada. Vi a inocência do vôo de borboletas de flor em flor. Percebi a suavidade do toque da brisa a acariciar minha face, como mãe amorosa.
Senti a compaixão ao pedir um pouco de água em casa de um total desconhecido e receber um sorriso, água fresca e ainda alguns figos maduros doces como mel, e ao final disso tudo ainda escutar uma saudação firme e sincera “bom caminho”. Como isso é importante, como é bom perceber o carinho em sua essência.
Senti sim a presença de algo muito maior, dessa grande energia que chamamos de Arquiteto do Universo que rege tudo e todos. Na verdade percebi que tudo isso está dentro de cada um de nós; somos parte disso. Ao longo de todo o caminho senti esta nuvem suave rodeando e dando a força necessária para que o corpo respondesse as sinuosas e por vezes árduas trilhas do caminho.
Chegando à cidade de Santiago de Compostela é hora de enfrentar uma longa fila, subir vagarosamente os degraus que nos separam da Compostelana, documento oficial da Igreja que nos reconhece como peregrinos. Assim repetimos o ritual secular de muitos que, antes de nós, pisaram pelas mesmas trilhas.
Finalmente a praça diante da majestosa Catedral de Santiago de Compostela nos remete à Babel, entre moradores, turistas e peregrinos contemplamos um misto de raças, idades, cores, níveis sociais, tão diferentes mas ao mesmo tempo tão iguais, todos naquele momento uniformizados de peregrinos.
Com passos firmes, vencemos os degraus que nos separam do interior dos salões da Catedral. Assistir a missa do peregrino é a coração de todo o esforço e empenho realizados durante o caminho, não há como não se emocionar, são lágrimas de conquista, de alegria, de redenção, que acima de tudo nos dão a certeza de que isso é apenas o começo ...
Ao término da missa finalmente as luzes dos salões são acesas e podemos registrar com fotos a beleza arquitetônica do interior da Catedral.
Findas todas as etapas da peregrinação, a sensação de vazio tomou por completo meu coração, sentei-me em um dos bancos, contemplei cada detalhe das paredes, dos altares e do fantástico turíbulo, fiz uma retrospectiva dos momentos vividos durante o caminho e em minha mente só uma pergunta ecoava:
“E agora? E agora? E agora? E agora? E agora? E agora? E agora?”
A sensação de que ali não era o fim, cresceu com a necessidade de entender este questionamento. Acho que na verdade não há uma única resposta e sim um conjunto de certezas que foram plantadas ao longo de toda a caminhada, passo após passo.Somente agora compreendi porque algumas pessoas acabam “viciadas” e fazem o caminho muitas e muitas vezes. Cada caminho é único e especial, certamente hoje não sou quem eu era antes da minha primeira caminhada.
Por: LiPeSco
(Caminho realizado em agosto 2006)